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Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto I

 

José Hipólito de Moura Faria
Biografia – Lima Barreto (1881-1922)
Mulato, órfão de mãe aos seis anos, o pai doente mental, alcoólatra e sem estabilidade financeira. Afonso Henriques Lima Barreto teve uma existência desde cedo marcada pelo sofrimento.
Embora aluno brilhante, quando o pai adoeceu precisou afastar-se da faculdade que cursava, a Escola Politécnica do Rio de Janeiro, para trabalhar como amanuense na Secretaria da Guerra.
As experiências com jornalismo, que vinham dos tempos de estudante, continuaram e se transformaram em profissão. Em 1905, tornou-se jornalista do Correio da Manhã, e quatro anos mais tarde publicou, em Lisboa, seu primeiro romance: Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Nesse trabalho, há fortes elementos autobiográficos, principalmente quando o autor focaliza os bastidores dos grandes jornais brasileiros de opinião, e o tema do preconceito racial, de que sempre se sentiu vítima.
Em 1911, Lima Barreto publicou, em forma de folhetim, seu romance mais conhecido, Triste Fim de Policarpo Quaresma. Em 1914, sofreu sua primeira internação, num hospício. Foi afastado por invalidez da Secretaria de Guerra, em 1918, e passou novo período no sanatório. Em 1920, candidatou-se sem sucesso à Academia Brasileira de Letras.
Vítima de um colapso cardíaco faleceu em 1922, alguns meses depois da Semana de Arte Moderna, na mesma cidade onde nasceu e passou toda a sua vida: o Rio de Janeiro.
A proximidade entre o jornalista e o escritor torna a literatura de Lima Barreto mais coloquial e, portanto, mais acessível ao grande público.
A incorporação de recursos da crônica jornalística é visível em seus textos, nos quais a simplicidade da linguagem, sua aproximação da fala cotidiana e a ironia sempre contundente estão voltadas para a denúncia de injustiças e arbitrariedades cometidas no Brasil pós-republicano, de que o autor traça um verdadeiro painel crítico e repleto de indignação.
Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto I – Obras do escritor
– Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909)
– Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911)
– Numa e Ninfa (1917)
– Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá (1919)
– Bagatelas
– Os Bruzundangas
– Clara dos Anjos
– Histórias e Sonhos
– Feiras e Mafuás
Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto I – Comentários sobre o escritor
1 – Estilo de época
Segundo Moisés Gicovate, eis as principais características da obra de Lima Barreto:
– Não copiou nem imitou. Os personagens de Lima Barreto são arrancados de sua própria vida; escrevia por necessidade, era uma forma de libertar-se, de analisar-se a si próprio.
– Os escritos são, em grande parte, autobiográficos; encerram muitos fatos verdadeiros, com a interpretação de Lima Barreto.
– A espontaneidade e a marca de seu estilo: fazia da pena o instrumento do coração.
– Lançou mão da sátira, da ironia e do humor. Certo, tudo isso é um meio de defesa, ou, segundo Freud, é mesmo o principal meio de defesa. De qualquer forma, a caricatura e a mordacidade faziam ressaltar a brutalidade e o ridículo de certas situações e, na medida em que se fundamentavam na realidade, eram objetivamente válidas.
– A obra de Lima Barreto aborda quase tudo, no seu tempo: forma de governo, organização econômica, preconceitos de raça, a burocracia, os tráficos de influência; os grupinhos, as sociedades de elogio mútuo – sem as quais o literato era condenado à marginalização.
2) Um Precursor do Modernismo
Os críticos geralmente concordam em situar Lima Barreto entre os pré-modernistas: “Caberia ao romance de Lima Barreto e de Graça Aranha, ao largo ensaísmo social de Euclides, Alberto Torres, Oliveira Viana e Manuel Bonfim, e a vivência brasileira de Monteiro Lobato o papel histórico de mover as águas estagnadas da “belle epoque”, revelando, antes dos modernistas, as tensões que sofria a vida nacional” (Bosi, HCLB, Cultrix, 2a. ed., p. 344).
O período que vai de 1902 a 1922 é considerado “atípico” dentro da literatura brasileira. Tivemos uma série de “neos”: neo-realismo, neo-parnasianismo, neo-simbolismo, todos sem maior expressão. O que triunfou, mesmo, foi uma sintaxe acadêmica, lusitanizante, que cortou por um momento a irrupção do projeto linguístico brasileiro, começado no Romantismo e continuado no Realismo. Lima Barreto rompeu com essa literatura muito antes do Modernismo.
3 – Precursor social
Enquanto alguns escritores do período escreviam como se estivéssemos no melhor dos mundos, e viam na literatura “o sorriso da sociedade” (Afrânio Peixoto), Lima Barreto escancarou as janelas e deixou entrar o cheiro forte da realidade. Ele assumiu os problemas do seu tempo e examinou-os em seus romances. Foi, sobretudo, o “romancista da Primeira República”, vista pelos olhos da classe média dos subúrbios do Rio. Enquanto os historiadores oficiais falavam nas lutas patrióticas da consolidação da República, ele via o outro lado da medalha: o povo, massa de canhão totalmente inconsciente do que se passava; a luta pelo poder entre os barões da agricultura e a burocracia militar ou civil; e, sobretudo, a vida dos subúrbios, com seus dramas e suas pequenas felicidades, seus grotescos e ridículos, seu lado terno e humano… A tradição desse romance realista remonta as “Memórias de Um Sargento de Milícias”, de Manuel Antônio de Almeida, e, depois de Lima Barreto, só teria continuadores expressivos já em pleno Modernismo, com o romance regionalista.
4 – Precursor literário
Lima Barreto rompeu conscientemente com a linguagem anacrônica, classicizada, de um Rui Barbosa, de um Coelho Neto, de tanto prestígio na sua época. Sobre isso, ele tem tiradas inesquecíveis: acusava os escritores acadêmicos de fazerem da literatura “uma continuação do exame de português”. Foi por isso, e por alguns pequenos descuidos em suas obras, que os adversários o acusaram de desleixado, quando na verdade ele rompeu voluntariamente com os representantes da “idade de ouro do lídimo linguajar castiço e vernáculo” (M. Cavalcanti Proença). O combate a tal tipo de linguagem seria retomado pelo Modernismo. Lima Barreto chegou primeiro.


Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto I – Resumo do Enredo


Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto I – Primeira Parte: Contém cinco capítulos. O Major Policarpo Quaresma é caracterizado inicialmente. Depois fica-se sabendo das “reformas radicais” por que vem passando o seu espírito, no sentido de colocar em prática os seus ideais patrióticos. Tenta aprender violão e modinhas, com Ricardo Coração dos Outros; dedica-se ao folclore e toma parte na brincadeira do Tangolomango, com crianças, numa festa em casa de Gal. Albernaz. Finalmente, passa a imitar os usos e costumes dos índios, os únicos “brasileiros legítimos”.
No capítulo terceiro, o autor nos transporta para uma festa em casa do general Albernaz, em comemoração ao noivado de sua filha, Ismênia, com o dentista recém-formado Cavalcanti. O leitor é apresentado a vários personagens que iremos acompanhar durante todo o romance: o contra-almirante Caldas, o Dr. Florêncio, o major Bustamante, as filhas do General: Quinota, Zizi, Lalá e Vivi e, sobretudo, Ismênia. D. Maricota, a esposa ativa do General, e a principal animadora da festa. A conversa banal, versando sempre sobre assuntos militares (as batalhas de que nunca participaram…) ou burocráticos. Lima Barreto critica o basbaque do povo miúdo diante de Cavalcanti, vendo no seu título de “doutor” algo quase sobrenatural. – Mais para o fim da festa, chega o inefável burocrata Genelício, parente de Caldas e namorado de Quinota, trazendo a notícia de que o Major Quaresma tinha sido internado num hospício.
As razões desse internamento são esclarecidas no capítulo seguinte: Quaresma havia dirigido um requerimento à Câmara, solicitando ao Congresso a adoção do tupi-guarani como língua oficial e nacional do povo brasileiro. Isto foi comentado na sociedade, na repartição, na imprensa, e Quaresma foi alvo de chacota geral. Poucos dias depois, por distração, envia um oficio em tupi ao Ministro do Exército, – o que 1he valeu uma suspensão do serviço e novos aborrecimentos. Isolado, não suportou tanta decepção, o que o levou à loucura. Durante o período de internamento, recebia as visitas de Ricardo Coração dos Outros e, sobre tudo, de Vicente Coleoni e sua filha Olga, que era afilhada de Quaresma. Os três cuidaram dos interesses do Major, conseguindo, inclusive, a sua aposentadoria.
Com Ismênia, as coisas não iam bem: depois do noivado, Cavalcanti sumira no mundo e nunca mais dera notícias. Humilhada, a moça começou a definhar.
Olga, por seu turno, torna-se noiva de um doutorando em Medicina, Armando Borges.
Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto I – Segunda Parte: Enquanto toda a primeira parte se situou nos subúrbios do Rio, agora o leitor é levado para o sítio do Sossego, adquirido por Quaresma, atendendo a uma sugestão de Olga, depois que tivera alta no hospício. A intenção do Major, na verdade, era dar sequência aos seus planos patrióticos. Chegara à conclusão de que uma agricultura forte seria o principal alicerce da pátria. Vendeu a casa de São Januário e mudou-se para o sítio, a quarenta quilômetros do Rio, no município de Curuzu, acompanhado pela irmã, Adelaide, e pelo fiel criado Anastácio. As primeiras semanas são dedicadas à exploração do local, que estava abandonado. Quaresma observa os espécimes vegetais e animais, as rochas, organiza um museu e uma biblioteca agrícola…
Cerca-se de instrumentos que, acredita lhe seriam úteis: termômetro, barômetro, pluviômetro, higrômetro, anemômetro… Mas o simples manejo da enxada foi aprendido com muita dificuldade, apesar da paciência do “mestre” Anastácio.
Quaresma, depois de algum tempo, recebe as visitas do escrivão da coletoria, Antonino Dutra, que desejava conhecer a sua posição política, e de Ricardo Coração dos Outros. Num “flashback”, o autor mostra a vida que Ricardo levava numa “casa de cômodos”, num subúrbio do Rio, e descreve a “fauna” que habitava tais casas. Ele conseguira a passagem para Curuzu graças à influência do general Albernaz, em cuja casa esteve convidado para cantar na festa de casamento de Quinota com Genelício.
Nesse meio tempo, Olga e Armando Borges também se casam e vão visitar Quaresma. Ricardo passou um mês no sítio e foi um triunfo na vila, onde fez muitas amizades e recebeu inúmeros convites para cantar – entre eles, do Dr. Campos, médico do local, chefe político e presidente da Câmara Municipal. Quaresma é atacado anonimamente pelo jornal “O Município” de Curuzu e, pelas indicações de Ricardo, o autor deve ter sido o tenente Antonino Dutra.
Olga se mostra impressionada com a miséria do interior.
Certa noite, ao deitar-se, Quaresma ouviu pequenos estalidos. Na despensa, depara com milhares de formigas que carregavam as suas reservas de milho e feijão. A partir daí, travaria uma luta sem tréguas com elas – e não conseguiria vencê-las.
Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto I: No entanto, o duro aprendizado agrícola começava a mostrar-lhe o verdadeiro vulto dos problemas nacionais: as pragas, como as formigas; os preços vis pagos ao produtor pelos atravessadores do Rio, onde colocava a produção do “Sossego”; a miséria, a pobreza e a improdutividade das terras; as perseguições políticas do interior, como as multas que, por vingança, lhe impuseram o Dr. Campos e o Tenente por sua mania de modinhas, seus estudos de folclore e o seu interesse pelo tupi! O Brasil precisava realmente de um governo forte, para reformar em profundidade a administração e espalhar “sábias leis agrárias”… Talvez um novo Henrique IV (França), assessorado por um novo Sully.
E os acontecimentos pareciam ajustar-se as suas reflexões. Estalou, no Rio, a revolta da Esquadra contra Floriano. Não seria este “Marechal de Ferro” o homem providencial, o governante forte de que o Brasil precisava? Foi ao correio e telegrafou: “Mal. Floriano, Rio. Peço energia. Sigo já – Quaresma”.
Lima Barreto o leitor leva, então, ao Rio para mostrar a movimentação e o impacto trazidos pela revolta. Muitos fazem cálculos para avaliar os benefícios que ela lhes pode trazer: Albernaz terá uma comissão extra para reforçar as combalidas finanças; Caldas espera, enfim, comandar uma frota do Governo e ganhar suas infindáveis demandas; Fontes, positivista, estava furioso com os insurretos e Bustamante já organiza um batalhão patriótico de voluntários. Genelício não perderia a chance para se promover a subdiretor da Secretaria da Fazenda e o Dr. Armando Borges enfim conseguiria ser médico do Estado.
Enquanto isso, no seu cubículo, Coração dos Outros, indiferente, ignorante de tudo, compunha suas modinhas e cantava os lábios da sua Carola, “onde encontrava a doce ilusão que adoça a vida…”

Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto I – Terceira Parte: De novo as ações do romance deslocam-se para o Rio. Quaresma vem, é recebido por Floriano, depois de esperar muito, já que o Marechal vivia cercado por cadetes e oficiais da Escola Militar, positivistas fanáticos da República, da autoridade e de Floriano. A descrição do Presidente é antológica: “… tinha ainda o palito na boca, como sinal do almoço; sua fisionomia era vulgar e desoladora.
O bigode caído, o lábio inferior pendente e mole a que se agarrava uma grande “mosca”; os traços, flácidos e grosseiros”. “Era um olhar mortiço, redondo, pobre de expressões” “e todo ele era gelatinoso, parecia não ter nervos”. “A sua concepção de governo era a de uma tirania doméstica: o bebê portou-se mal, castiga-se”. “Portar-se mal era fazer oposição, e os castigos eram… Prisão e morte.
Floriano recebeu com má vontade o memorial que Quaresma lhe entregou, sobre os problemas agrícolas do país: “- Deixa aí…”. O Bustamante, que também lá estava, não perdeu tempo e alistou o Major Policarpo no seu batalhão patriótico, cobrando-lhe, além disso, 400.000 mil reis pela patente de Major.
Quaresma passa pela casa do compadre Coleoni para revê-lo e vem para o quartel, que funcionava num velho cortiço condenado pela Higiene. Coração dos Outros foi também alistado “voluntariamente” e, aos gritos e berros, pedia que lhe devolvessem o violão – o que foi feito por solicitação do Quaresma.
Na rotina da revolta, o peso e o comando do “batalhão patriótico” acabaram ficando por conta do herói, que passava os dias e as noites no quartel, enquanto os outros arrumavam inúmeras regalias e dispensas. Quaresma estuda furiosamente as artes militares, como artilharia, balística, mecânica, cálculo… Quase todas as tardes trocavam-se tiros entre o mar e as fortalezas, e “tanto os navios como os fortes saíam incólumes de tão terríveis provas”.
Certa madrugada, o Mal. Floriano, que gostava de “incertas” pelos quarteis e pelos fortes, apareceu no batalhão do Quaresma – e este se animou a perguntar-lhe se já lera o seu memorial. O Presidente, com sinais de aborrecimento mortal, diz-1he: “Você, Quaresma, é um visionário”. E Lima Barreto descreve, então, a Lua povoando os espaços e criando uma atmosfera de sonho.

Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto II: No terceiro capítulo desta ultima parte, o autor descreve a morte de Ismênia. O noivo não apareceu mesmo, e ela definhou e enlouqueceu. O pai experimentou tudo: médicos, curandeiros, médiuns… O Dr. Armando, por indicação de Quaresma, também tentou recuperá-la. Pressentindo a morte, Ismênia vestiu-se de noiva. “O véu afagou-lhe as espáduas carinhosamente, como um adejo de borboleta. Teve uma fraqueza, uma cousa, deu um ai e caiu de costas na cama, com as pernas para fora…” “Quando a vieram ver, estava morta”.
A revolta já durava quatro meses. O Dr. Armando já conseguira sua nomeação, na vaga de um colega demitido por ter visitado um amigo preso. Quaresma começava a sentir-se possuído por mortal desespero ao ver a repressão violenta e os crimes do governo, e ao perceber que Floriano jamais faria as reformas com que sonhara. “Era, pois, por esse homem que tanta gente morria?” Recebe de Bustamante a notícia de que o “batalhão” iria marchar para frente de batalha, sob o comando de Quaresma: ele mesmo arranjara uma desculpa para não ir: tinha que fazer a escrituração contábil da unidade…
Coração dos Outros, proibido de cantar, vivia triste como um “melro engaiolado”.
O sítio do Sossego estava no mais completo abandono, apesar da boa vontade de Anastácio. D. Adelaide tinha a companhia de Sinhá Chica, velha benzedeira, e escrevia cartas desesperadas ao irmão, pedindo a sua volta. E através de uma carta de Quaresma a ela que ficamos sabendo da sequência dos acontecimentos: ele fora ferido em combate, assim como Ricardo Coração dos Outros, e este bem mais gravemente. Adquirira um horror definitivo à guerra: “Eu duvido, eu duvido, duvido da justiça disso tudo, duvido de sua razão de ser…”.
A revolta foi, afinal, dominada e Quaresma, solitário, passou a comandar outro batalhão, como carcereiro de marinheiros presos. Desmoronara-se todo o sistema de ideias que o levara a meter-se na guerra. “Todos tinham vindo ou com pueris pensamentos políticos, ou por interesse; nada de superior os animava”. “Os prisioneiros eram a gentinha pequena”, “inteiramente estranha à questão em debate…” “sem responsabilidade, sem anseio político, sem vontade própria, simples autômatos nas mãos dos chefes e superiores que a tinham abandonado à mercê do vencedor…”
Quando assistiu, certa noite, ao sorteio dos prisioneiros que iriam ser assassinados, por vingança, no “Boqueirão”, levou o choque decisivo: ele se tinha misturado naqueles tenebrosos acontecimentos, e assistia “ao sinistro alicerçar do regime”.
Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto II: Escreveu ao Presidente, protestando contra o que acabara de ver. Resultado: foi preso e encarcerado na Ilha das Cobras, em cuja masmorra reflete sobre o seu estranho destino. Era essa a recompensa que recebia da Pátria, por tê-la amado tanto, por ter-lhe ofertado toda a sua vida, renunciando a. tudo… “O tupi encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa, o escárnio; e levou-o a loucura. E agricultura? Nada. As terras não eram ferazes como diziam os livros… “E onde estava a doçura de nossa gente?” “Pois não a via matar prisioneiros, inúmeros?”
“A sua vida era um encadeamento de decepções.” “A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete”. “A que existia, de fato era a do tenente Antônio, do Dr. Campos, a do homem do Itamarati”
Ricardo, sabendo de sua prisão, pôs-se a campo para tentar salvá-lo. Lembrou-se dos amigos comuns e foi procurá-los, mas todos se esquivaram: Albernaz não poderia dar a impressão de ser contra o governo; Genelício não se metia com essas coisas. Bustamante ameaçou, até, prendê-lo também.
Lembrou-se de Olga. Ela foi procurar Floriano, cercado então, de bajuladores. Um secretário que a recebeu: “Quaresma? Aquele traidor? O Marechal não a atenderá”. Olga lhe deu as costas, arrependida por ter vindo. “Com tal gente, era melhor tê-lo deixado morrer só e heroicamente num ilhéu qualquer, mas levando para o túmulo inteiramente intacto o seu orgulho, a sua doçura, a sua personalidade moral, sem a mácula de um empenho que diminuísse a injustiça de sua morte, que de algum modo fizesse crer aos seus algozes que eles tinham direito de matá-lo”.
Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto II – Aspectos estruturais
a – Classificação – Trata-se de um romance social, tendo como núcleo principal a história de um patriota tão puro e ardente quanto ingênuo, quase “louco”.
b – A narração é feita em terceira pessoa, “narrador onisciente”. Em pequenos trechos, a história é contada pelos próprios personagens, como as circunstâncias da guerra que o major Quaresma descreve, em carta, a sua irmã Adelaide. Como o autor conduz simultaneamente vários núcleos dramáticos (várias histórias), ele às vezes antecipa alguns fatos para, em “flashback”, voltar atrás e explicar como as coisas sucederam. Assim, no terceiro capítulo, Genelício dá a notícia de que o Major Quaresma fora internado num hospício. E só no capítulo quarto é que iremos saber as causas e circunstâncias desse internamento.
Lima Barreto desenvolve, simultaneamente, o núcleo principal e os núcleos secundários da história. Em quase todos os capítulos comparece a totalidade dos protagonistas. Para isso o autor se vale de encontros fortuitos entre os personagens, ou de correspondência, ou de visitas recíprocas, ou festas e almoços. Através desses processos ele encontra jeito de ir contando paralelamente a história de todos e de cada um.
Os diálogos são, geralmente, de extraordinária espontaneidade e adequação aos personagens: a fala de Genelício é sempre pedante, afetada e superior; a do Major Quaresma trai as suas leituras patrióticas e seu jeito tímido a formaliza; a de Vicente Coleoni e entremeada de expressões e palavras italianas…
Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto II – Tempo: o romancista da Primeira República
1 A ação do romance situa-se numa época precisa: a da implantação da República no Brasil, com os governos de Deodoro e, sobretudo, do Marechal Floriano.
Os acontecimentos políticos são vistos no livro não pela ótica oficial, mas pelos olhos do povo e, em particular, na perspectiva da classe média suburbana.
Sob o aspecto sociológico, Lima Barreto conseguiu uma pintura perfeita: surge diante dos olhos aquela época dos fraques, das casacas e sobrecasacas, do pince-nez (óculos de um aro só), das correntinhas de ouro nas cavas dos coletes, das bengalas e das cartolas… Dorme-se de camisão, paga-se em ceitis, mil réis e contos de réis. Anda-se de coches, de tílburis e de bondes puxados a mulas, joga-se o “pocker”, as mulheres enfiam-se em cassas bem engomadas… As gravatas têm alfinetes, as casas são ornamentadas com monogramas na porta de entrada, compoteira nas cimalhas “e outros detalhes equivalentes…”
Já o tempo da narrativa é cronológico: os fatos, normalmente são apresentados em sua sequência temporal. Raramente, como vimos há uma antecipação, em algum capítulo, logo seguida de um “flashback” para restabelecer o elo perdido.
Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto II – Lugar: o romance dos subúrbios do Rio.
Com exceção dos meses passados no “Sossego”, a obra se ambienta, como outras de Lima Barreto, no Rio de Janeiro e, sobretudo, nos seus subúrbios. Há um pano de fundo maravilhosamente bem retratado, econômica, social e folcloricamente: o sossego das ruas da periferia, as fofocas, a vigilância e o comentário dos vizinhos sobre os vizinhos, os tipos populares – como o próprio e inesquecível Ricardo Coração dos Outros. A “aristocracia” dos subúrbios, composta de funcionários públicos, de pequenos negociantes, de médicos de alguma clínica, de tenentes de diferentes milícias, nata essa que impara pelas ruas esburacadas daquelas distintas regiões…”
O ambiente burocrático das repartições publicas, de “papelada inçada”, de conversas e “gozações”, e descrito com vivacidade: Lima Barreto o conhecia muito bem.
Outra reconstituição que nos cala fundo, porque é feita com fibras de sua própria vida e experiência, é a do hospício, onde Quaresma passou uma temporada.
Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto II: O sítio do “Sossego” é descrito logo no início da segunda parte. O lugar tinha “o aspecto tranquilo e satisfeito de quem se julga bem com sua sorte”. “A casa erguia-se sobre um socalco, uma espécie de degrau, formando a subida para a maior altura de uma pequena colina que lhe corria nos fundos. Em frente, por entre os bambus da cerca, olhava uma planície a morrer nas montanhas que se viam ao longe”. Essa planície era cortada por um regato de águas sujas e, qual uma fita, pela via férrea. A habitação “era também risonha e graciosa nos seus muros caiados. Edificada com a desoladora indigência das nossas casas de campo, possuía, porém, vastas salas, amplos quartos, todos com janelas, e uma varanda com uma colunata heterodoxa”.
Outra excelente descrição dos subúrbios do Rio aparece no segundo capítulo da segunda parte, conforme mostramos ao resumir o enredo. Finalmente, nos últimos capítulos do romance a ação decorre muitas vezes a beira-mar. E não faltam as poéticas reconstituições desse ambiente: a cerração que de manhã envolve tudo, o pôr-do-sol na praia…
O centro da cidade, a época da rebelião, era alegre e jovial. Havia muito dinheiro, o governo pagava soldos dobrados… Os teatros eram frequentados e os “restaurantes” noturnos também.
Em contraste, o Campo da São Cristóvão: “ia vendo aquela sucessão de cemitério, com as suas campas alvas que sobem montanhas, como carneiros tosquiados e limpos a pastar; aqueles ciprestes meditativos que as vigiam; e como que se lhe representava que aquela parte da cidade era feudo e senhorio da morte”.
Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto II – Personagens: a fabulosa galeria
Lima Barreto, com este romance, criou tipos que já não mais lhe pertencem, mas à literatura brasileira. Em particular, o major Policarpo Quaresma e o menestrel “Ricardo Coração dos Outros”.
1. O Major Policarpo Quaresma- “era um homem pequeno, magro, que usava pince-nez, olhava sempre baixo, mas quando fitava alguém ou alguma cousa, os seus olhos tomavam, por detrás das lentes, um forte brilho de penetração, e era como se ele quisesse ir à alma da pessoa ou da cousa que fixava”. “Contudo, sempre os trazia baixos como se se guiasse pela ponta do cavanhaque que lhe enfeitava o queixo”. “Vestia-se sempre de fraque, e era raro que não se cobrisse com uma cartola de abas curtas e muito alta, feita segundo um figurino antigo…” Tudo “made in Brasil”: “de tudo que há nacional, eu não uso estrangeiro. Visto-me com um pano nacional, calço botas nacionais e assim por diante.”
De profissão, era burocrata, tendo chegado a subsecretário do Arsenal de Guerra; não tendo podido ser militar, evoluiu-se sob os dourados do Exército, escolheu o ramo militar da administração. Era onde estava bem. Embora fosse considerado, pela sua idade, ilustração, modéstia e honestidade, os colegas caçoavam dele: “Este Quaresma! Que cacete. Pensa que somos meninos de tico-tico. Arre! Não tem outra conversa.” Esta conversa, do Quaresma, era música de uma nota só: a Pátria, sua grandeza, suas riquezas.
Há quase trinta anos, a rotina do Major servia de relógio para a vizinhança. Vivia isolado, com a irmã Adelaide. Dedicava-se a estudar e conhecer o Brasil e suas riquezas, possuindo ótima biblioteca especializada nesse tema.
O que ele tem de mais característico, no entanto, é a sua filosofia de vida: “… uma disposição particular de seu espírito, forte sentimento que guiava sua vida. Policarpo era patriota. Desde moço, aí pelos vinte anos, o amor da pátria tomou-o todo inteiro. Não fora o amor comum, palrador e vazio; fora um sentimento sério, grave e absorvente”.
2. O Major vivia com sua irmã Adelaide: espírito totalmente diferente, não o entendia em nada. Censurava-o constantemente pela rigidez da preferência peles artigos nacionais. Queixava-se dos temperos nacionais, da manteiga rançosa, da falta de “flores de verdade” no jardim…
Tinha seus cinquenta anos – quatro a mais que o Major. Era uma bela velha de corpo médio”, “ser metódico, ordenado e organizado, de ideias simples, médias e claras, seus olhos verdes não revelavam nenhuma paixão ou ambição.”
3. Anastácio era o criado que desde sempre acompanhava o Major. Preto africano, era muito trabalhador, mas precisava de comando por que era “baldo de iniciativa, de método, de continuidade no esforço”.
4. Vicente Coleoni, imigrante italiano a quem Quaresma emprestava dinheiro num momento difícil e que, vindo a prosperar em quitandas e na construção civil, jamais perdeu a gratidão. Vivia num palacete em Real Grandeza, com a única filha, Olga, afilhada do Major. Alma boa, reta, sempre fiel ao compadre, de quem, no entanto, não entendia as excentricidades.
5. Olga era muito querida pelo Major, e lhe ocupava no coração o lugar dos filhos que não tivera nem teria. “Era pequena, muito mesmo”. No seu rosto, nada de grego. Havia nos seus tragos muita irregularidade, mas a sua fisionomia era profunda e própria, com seus grandes olhos negros e luminosos. “A boca pequena, de um desenho fino, exprimia bondade, malícia, e o seu ar geral era de reflexão e curiosidade”. Casou-se meio sem convicção com o Dr. Armando Borges, por quem perdeu toda a afeição. É de notar que, no romance, Olga parece muitas vezes exprimir as opiniões pessoais do próprio autor,
6. Ricardo Coração dos Outros– famoso por sua habilidade em cantar modinhas e tocar violão. Em começo, a sua fama estivera limitada a um pequeno subúrbio da cidade, em cujos “saraus” ele e seu violão figuravam como Paganini e a sua rabeca em festas de duques. Depois ela cresceu, e ele passou a “frequentar e honrar” as melhores famílias do Méier, Piedade e Riachuelo. Já chegava a São Cristóvão e em breve (ele o esperava) Botafogo convidá-lo-ia, pois os jornais já falavam no seu nome…” – Era magro, baixo, pálido, quase sempre carregando um violão agasalhado numa bolsa de camurça. Vivendo para o violão e as modinhas, e para o ideal de chegar até Botafogo ficava alheio às contingências terrenas, isolado no seu cubículo de uma casa de cômodos, almoçando café, que ele mesmo fazia, e pão, indo à tarde jantar a uma tasca próxima”. A sua figura de cabo recrutado à força era cômica: “a blusa (do fardamento) era curtíssima sungada; os punhos lhe apareciam inteiramente; e as calças eram compridíssimas e arrastavam no chão”.
Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto III
Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto III – A turma do “Sossego”
Várias personagens estão ligadas à permanência de Quaresma no sitio:
7. Felizardo – muito trabalhador, foi contratado por Quaresma. Casado com a curandeira Sinhá Chica. “Era magro, alto, de longos braços, longas pernas, como um símio”. Muito conversador, leva-e-traz. Rebentando a revolta da Esquadra, ocultou-se para fugir ao recrutamento.
8. Mané Candeeiro – outro contratado. Era claro e tinha umas feições regulares, cesarianas, duras e fortes, um tanto amolecidas pelo sangue africano. Falava pouco e cantava muito.
9. Sinhá Chica – mulher de Felizardo, “velha cafuza, espécie de Medeia esquelética, cuja fama de rezadeira pairava por todo o município”. “Vivia sempre mergulhada no seu sonho divino, abismada nos misteriosos poderes dos feitiços, sentada sobre as pernas cruzadas, olhos baixos, fixos, de fraco brilho, parecendo esmalte de olhos de múmia, tanto ela era encarquilhada e seca.”
10. Tenente Antonino Dutra– escrivão da Coletoria de Curuzu, encarna, juntamente com o Dr. Campos, os piores vícios de nossa política do interior. Apareceu no “Sossego” sob o pretexto de angariar donativos para Nossa Senhora da Conceição e, na realidade, para tirar suas conclusões sobre a “política” do Quaresma. Atacou o Major pela imprensa e intimou-o a pagar 500.000 réis de multa, por ter enviado umas batatas para o Rio. A sua gordura “tinha um aspecto desonesto. Parecia que a fizera de repente e comia a mais não poder, com medo de perdê-la de um dia para outro”.
11. Dr. Campos – médico, presidente da Câmara Municipal de Curuzu. “Jovial, manso, de grande corpo, era alto e gordo, pançudo um pouco, olhos castanhos, quase a flor do rosto, uma testa média e reta; o nariz, mal feito”. Um tanto trigueiro, cabelos corridos e já grisalhos – era um caboclo, mas o bigode era crespo. Tinha de cor uma meia dúzia de receitas, nas quais conseguira enquadrar as doenças locais. Tendo proposto um golpe a Quaresma, como este recusasse, passou a persegui-lo.
Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto III – A turma do Albernaz: Um numeroso grupo de personagens está ligado à casa do General Albernaz ou ao próprio: por amizade, parentesco, casamento com suas filhas…
12. Gal. Albernaz- “Nada tinha de marcial, nem mesmo o uniforme que talvez não possuísse. Durante toda a sua carreira militar, não viu uma única batalha, não tivera um comando, nada fizera que tivesse relação com a sua profissão e o seu curso de artilheiro”. “O altissonante título de general… ficava mal naquele homem plácido, medíocre, bonachão, cuja única preocupação era casar as cinco filhas e arranjar pistolões para fazer passar o filho nos exames do Colégio Militar”. “Era alto, o pescoço enterrado nos ombros, e o seu pince-nez era preso por um trancelim (corrente) de ouro que lhe passava por de trás da orelha esquerda. Em suas conversas, era indispensável uma referência a Guerra do Paraguai, dramatizada, importante”. – O Sr. esteve lá, não foi, General ?”
“- Não, adoeci antes e voltei ao Brasil. Mas o Camisão esteve…”
13. Era casado com Dona Maricota:”Muito ativa, muito inteligente, não havia dona de casa mais econômica, mais poupada e que fizesse render mais o dinheiro do marido e o serviço das criadas”. A pequena cabeça de cabelos pretos contrastava muito com o seu corpo enorme.
Ismênia, Quinota, Zizi, Lalá e Lulu eram os filhos do casal. Ismênia era noiva de Cavalcanti, Quinota casou-se com Genelício e Lalá noivava com o tenente Fontes.
14. Ismênia – o autor acompanha o desenrolar do seu drama. “Era até simpática, com a sua fisionomia de pequenos traços mal desenhados e cobertos de umas tintas de bondade”. Seu noivado com Cavalcanti durava anos: havia cinco que ele arrastava um curso de Odontologia de dois anos. “Na vida, para ela, só havia uma coisa importante: casar-se; mas pressa não tinha, nada nela a pedia”. “Amorenada, o seu traço de beleza dominante era os seus cabelos castanhos, com tons de ouro, sedosos ate ao olhar”. Psicologicamente, era de uma natureza pobre, incapaz de qualquer vibração sentimental. Mostrava uma bondade passiva, indolência de corpo, de ideias e de sentidos .Ante a fuga do noivo, cujo pedido de casamento fora tão comemorado, viu desmoronar o sentido de sua vida. Incapaz de reunir forças para reagir, humilhou-se, entristeceu-se, definhou, enlouqueceu, morreu.
15. Cavalcanti – Tinha olhos esgazeados, o nariz duro e fortemente ósseo. Durante o curso fora financiado nos livros, taxas e comida pelo futuro sogro. Formado, dirigiu-se para o interior e nunca mais deu notícias à noiva.
16. Contra-almirante Caldas- Digno êmulo do Albernaz, nunca embarcara, a não ser por pouco tempo, na Guerra do Paraguai. Certa vez, deram-lhe o comando de um navio inexistente. Como não conseguisse encontrá-lo, apresentou-se aos superiores e foi preso e submetido a julgamento. Absolvido, nunca mais caiu nas graças deles. Levou quarenta anos para chegar a capitão de fragata. Reformado no posto imediato, “todo o seu azedume contra a Marinha se concentrou num longo trabalho de estudar leis, decretos, alvarás, avisos, consultas que se referiam à promoção de oficiais. “Os requerimentos, pedindo a modificação de sua reforma, choviam sobre os sucessivos ministros… Viu fugir a última esperança por ocasião da revolta da esquadra, quando ficou ao lado de Floriano, calculando que ele necessitaria de militares daquela arma, ensejando-lhe, afinal, a oportunidade de comandar uma frota.“
17. Inocêncio Bustamante – Tinha a mesma mania demandista do Caldas. Renitente, teimoso, mas servil e humilde. Antigo voluntário da pátria, possuindo honras de major honorário, vivia com requerimentos pedindo diversas coisas: medalhas, honras de tenente-coronel…
A rebelião foi a sua oportunidade de ouro: imaginou e organizou o batalhão “Cruzeiro do Sul”, cuja responsabilidade ficou de fato nos ombros de Quaresma, mas que deu, a ele, a patente tão ambicionada. No seu uniforme, talhado segundo os moldes dos guerreiros da Crimeia, com uma banda roxa e casaquinha curta, “parecia ter saído, fugido, saltado de uma tela de Vítor Meireles… “Tinha uma, barba ‘mosaica’ e a sua especialidade, no batalhão, era cuidar da escrita, com caligrafia caprichada, tinta azul e vermelha.
18. Doutor Florêncio – encontramo-lo na festa do noivado de Ismênia. “Os anos e o sossego da vida lhe tinham feito perder todo o saber que porventura pudesse ter tido ao sair da escola. Era mais um guarda de encanamentos que mesmo um engenheiro”.
19. Genelício – Se bem que um dos personagens mais importantes do livro, e estereotipado, convencional, caricatural. Nitidamente “plano”, e brindado com todos os defeitos que mais aborreciam o próprio Lima Barreto: “Empregado do Tesouro, já no meio da carreira, moço de menos de trinta anos, ameaçava ter um grande futuro”. “Não havia ninguém mais bajulador do que ele. Nenhum pudor , nenhuma vergonha!” “Sabia todos os recursos para se valorizar perante os chefes. “Na bajulação e nas manobras para subir, tinha verdadeiramente gênio. Era tido em grande conta, e juntava a sua segura posição administrativa um curso de direito a acabar”. “Pequeno, já um tanto curva do, chupado de rosto, com um pince-nez azulado, todo ele traía a profissão, os seus gostos e hábitos. Era um escriturário”.
20. Tenente Fontes – Noivo de Lalá, a terceira filha do Albernaz. Entendia de artilharia e serviu, na revolta, sob o comando de Quaresma – a quem, aliás, não se subordinava. “Era positivista e tinha de sua República uma ideia religiosa e transcendente. Fazia repousar nela toda a felicidade humana…”
“Era magro, moreno carregado e a oval do seu rosto estava amassada aqui e ali”. Falava com unção, a voz arrastada e nasal em tom de sermonário.
21. Dr. Armando Borges, outro tipo caricatural, como o Genelício. Casado com Olga, e por isso enriquecido, não se satisfazia: “a ambição de dinheiro e o desejo de nomeada esporeavam-no”. Médico do Hospital Sírio, em meia hora atendia a trinta ou mais doentes. Seu grande sonho era ser médico do Estado, e valeu-se da rebelião para alcançar seus objetivos. Desonesto, roubara escandalosamente de uma órfã rica – o que lhe valeu o desafeto da esposa. Achava que o seu pergaminho e o anel de doutor tornavam-no superior aos mortais comuns. Procurava ficar sempre em evidência, por amizades com jornalistas e publicação periódica de artigos, “estiradas compilações, em que não havia nada de próprio”. Para dar a impressão à esposa e aos outros de que estudava muito, arranjava para ler novelas de Paulo de Kock em lombadas de títulos trocados… Sua última invenção para se manter superior foi a de “traduzir para o clássico as coisas que escrevia, invertendo os termos da oração, repicando-a com vírgulas e entremeando-a com meia dúzia de vocábulos arcaicos.
Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto III – Uma observação final: O leitor deve ter percebido que Lima Barreto critica impiedosamente os seus personagens. Pouquíssimos são poupados: Olga, dona Adelaide… Mesmo aqueles, como Quaresma, que representavam algo puro, ingênuo, honesto, são implacavelmente expostos ao ridículo. Outros já parecem criados de propósito para se obter unicamente esse efeito.
Certamente, temos aí um dos aspectos do homem deslocado e revoltado que foi Lima Barreto. Nos tipos caricaturais, sobretudo, ele dá vazão aos seus ressentimentos.
Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto III – problemática: A problemática central da obra e relativamente simples. Mas as questões levantadas secundariamente, como de passagem, por Lima Barreto, são tão numerosas:
. O Tema da Loucura – há descrições e tentativas de entender o fenômeno da loucura, que é abordado em páginas comovedoras traindo, sem dúvida, a experiência amarga e a convivência do autor com a deficiência mental.
2. A Burocracia – outro aspecto ligado à experiência pessoal do autor. A burocracia é impiedosamente satirizada: na dificuldade em se “liquidar uma aposentadoria”; no ambiente nivelador e anônimo; no vale-tudo para se obter promoção e nas manobras do “especialista” Genelício.
3. Política no Interior do Brasil- Os “golpes” nos adversários; a política rasteira, de fofocas, perseguições; a utilização do cipoal de leis, decretos, portarias em vinganças mesquinhas contra os desafetos, desestimulando as iniciativas e a produção…
4. Os casamentos interesseiros da burguesia – o esforço de Albernaz para levar a bom termo o casamento das filhas. O casamento de Quinota com Genelício: “Creio que casei bem minha filha…” Armando Borges meditando a sua ascensão social e financeira pelo matrimônio. A educação errada das mulheres para o casamento, como se fosse o sentido da vida – o que explica o drama de Ismênia.
5 O Mito do “doutor”– contra ele Lima Barreto assesta suas baterias mais causticas e contundentes: Cavalcanti, na festa do pedido de casamento, e cercado por uma turma de basbaques, quase a adorá-lo como a um deus, pela simples razão de ter concluído o curso de Odontologia.
Armando Borges, formado, passando a conversar “pausadamente, sentenciosamente, dogmaticamente”, revirando no dedo o seu anelam, para marcar a infinita distancia que o separava de Quaresma. Ele resistia à ideia de ir visitar o padrinho da esposa, “gente sem fortuna e sem título, de outra esfera”.
6. Miséria e improdutividade do interior – “O que mais a impressionou foi a miséria geral, a falta de cultivo, a pobreza das casas, o ar triste, abatido, da gente pobre”. “Por que ao redor dessas casas, não havia culturas, uma horta, um pomar? Não seria tão fácil, trabalho de horas?”
“De resto, a situação geral que o cercava, aquela miséria da população campestre que nunca suspeitara, aquele abandono de terras a improdutividade, encaminhavam sua alma de patriota meditativo a preocupações angustiosas. Via o Major com tristeza não existir naquela gente humilde sentimento de solidariedade, de apoio mútuo. Não se associavam para cousa alguma…”
7. Literatura do tempo – A “charge” do Dr. Armando Borges escrevendo seus artigos em “língua comum” e depois “traduzindo-os para o clássico” mediante alguns truques, e mais expressiva do que longas considerações. O famoso requerimento de Quaresma pedindo a oficialização do tupi não deixa de dar também uma alfinetada:
Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto III: …certo de que a língua portuguesa é emprestada ao Brasil; certo também de que, por esse fato, o falar e o escrever em geral, sobretudo no campo das letras, se veem na humilhante contingência de sofrer continuamente censuras ásperas dos proprietários da língua; sabendo, aliás, que, dentro do nosso país, os autores e os escritores, com especialidade os gramáticos, não se entendem no tocante a correção gramatical…
8. Críticas ao governo – Avolumam-se, a propósito de cada deficiência social, econômica ou política observada no romance. A política de colonização, com abandono dos brasileiros e favorecimento dos imigrantes: as taxas e impostos que esmagavam o produtor agrícola, deixado, por outro lado, as mãos dos atravessadores monopolistas. O ensino brasileiro, incapaz de formar doutores que pudessem combater uma simples peste de galinheiro…
9. A República– Sabe-se que Lima Barreto sempre guardou profunda mágoa da República, cuja implantação deixou o seu pai sem emprego, sobrevivendo à custa de favores de amigos. Espetáculos de prisões, de saques, de assassinatos, ele também viu, desde menino, na invasão da Ilha do Governador – episódio que, aliás, e mencionado neste romance. Isto tudo ajuda a explicar as muitas criticas e sátiras endereçadas ao novo regime, em contraste com acentuada benevolência em relação à Monarquia do Segundo Reinado. O positivismo, em particular, do qual eram adeptos os “pais da República”, e asperamente estigmatizado, no seu culto à falsa ordem, a tirania, a ditadura, ao próprio regime, como se este fosse a chave da felicidade geral da humanidade.
O Mal. Floriano e o seu governo são impiedosamente dissecados: a apatia e a falsa auréola do Marechal, a bajulação que o cercava; as perseguições aos adversários, as prisões; a corrida interesseira para se colherem os frutos da rebelião da esquadra: promoções, patentes, comissões extras”.
10. A Imprensa Frívola – atacada na campanha de insultos, troças e zombarias promovida contra o major Quaresma, no episódio do tupi, língua brasileira: “Não ficaram nisso; a curiosidade malsã quis mais. Indagou-se quem era, de que vivia, se era casado, se era solteiro. Uma ilustração semanal publicou-lhe a caricatura e o Major foi apontado na rua. Os pequenos jornais alegres, esses semanários de espírito e troça, então! eram de um encarniçamento atroz com o pobre major. Com uma abundância que marcava a felicidade dos redatores em terem encontrado um assunto fácil, o texto vinha cheio dele…”
11. Superstições – em duas ocasiões especiais, são mencionadas e satirizadas: nos esforços de Albernaz para curar Ismênia, recorrendo a espíritas, médiuns e feiticeiros ex-escravos; e na descrição de Sinhá Chica e seus “dotes”.
12. O Tema principal: o choque de um patriota sonhador com a realidade
Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto III: Sob esse aspecto, o tema do romance e desdobrado em três movimentos principais, correspondentes a três partes da obra.
a. Primeira etapa: predomínio da fantasia.
O major Quaresma nos é apresentado como indivíduo sem amigos, levando vida reclusa, incubando e engordando seu extraordinário patriotismo em leituras sem fim, em reflexões “me ufanistas”. Acredita piamente nos livros e, no seu pequeno mundo, vive do que é “nacional”.
Observa-se que esta fase, de máxima defasagem entre sonho e realidade, também se veste de máxima comicidade: o sisudo Quaresma representando o Tangolomango, ou reproduzindo o livro goitacá de boas maneiras, só faltando chegar a “alta costura” de Adão; ou ainda, acreditando na oficialização do tupi-guarani…
A loucura é o resultado lógico de tamanha ruptura entre o sonho e a realidade.
b. Segunda etapa: equilíbrio entre realidade e fantasia.
Esta é a fase do Quaresma agrícola. E ainda cômico ver a concepção e a execução de sua estratégia agrária: os minuciosos cálculos baseados nos boletins da Associação de Agricultura Nacional; a parafernália de hidrômetros, pluviômetros, anemômetros, barômetros e outras inutilidades domésticas, logo dribladas pela realidade; a crença inabalável nas “terras mais ubérrimas do mundo”; a tenacidade com que tenta dominar os altos segredos do emprego da enxada, no que mais de uma vez teve de “beijar a terra, mãe dos frutos e dos homens”…
E o impossível acontece. Quaresma é tão honesto, tão puro, que sua aparentemente inexpugnável fortaleza de crenças não resiste ao assalto da realidade: as decepções se sucedem, e ele as acolhe, com um sofrido espanto; as formigas, as intempéries, os atravessadores, as perseguições de coletores e políticos em disponibilidade…
É o segundo choque de Quaresma; “a luz se lhe fez no pensamento…” a rede de posturas, códigos e preceitos, nas mãos de tais caciques, transformada em “instrumentos de suplícios para torturar os inimigos, oprimir as populações, crestar-lhes a iniciativa e a independência abatendo-as e desmoralizando-as…”
Estava a crise posta à mesa. A antiga visão ainda resiste. Reconhece a puerilidade, a ingenuidade do primeiro Quaresma, mas é este que, ainda vivo, tenta encontrar em Floriano um Sully, um novo Henrique IV para reformar a Pátria…
c. Terceira etapa: vence a realidade
E o humor cede ao patético. Na verdade, é bem o antigo Quaresma que, ao primeiro contacto, ainda não extrai a raiz quadrada de Floriano e da fauna que o cerca, que ainda pretende comandar um destacamento inspirando-se nos livros; que ainda larga um canhão apontado para o alvo e corre a casa conferir os cálculos… Mas triunfam a sua candura, a sua honestidade e pureza; elas e que não o deixam compactuar com o crime, com a opressão, com o absurdo. Elas – ainda uma vez a estrada real para a verdade. E são elas, ainda que banham as páginas finais do romance – de um grande romance –com estas águas de humanidade e de sofrimento que não mais nos fazem rir, e que talvez nos puxem as lágrimas…
E a crise final, e a redenção de Quaresma: “A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete”. “A que existia de fato, era a do tenente Antonino, a do Dr. Campos, a do homem do Itamarati”. (269)
Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto III: Sim, este é o romance do verdadeiro patriotismo, redimido pela vida, paixão e morte do humilde Policarpo Quaresma, que lhe assinalou a sua verdadeira base, o lugar de onde é preciso, modestamente, começar. O romance não termina, depois de tudo, no desespero: “esperemos mais”, e o último pensamento, sereno, de Olga – é de Lima Barreto.

                                                             

                                                                                                                       BOA LEITURA!


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